quarta-feira, 22 de julho de 2009

Amor


Por Chögyam Trungpa Rinpoche

Existe uma enorme reserva de energia que não é centralizada e que, de modo algum, pertence ao ego. É essa a energia que é a dança sem centros dos fenômenos, o Universo interpenetrando-se, fazendo amor consigo mesmo. Ele contém duas características: a qualidade ígnea da cordialidade e a tendência de fluir dentro de um padrão determinado, do mesmo modo como o fogo contém a centelha e o ar que conduz a centelha. E essa energia está sempre em movimento, sendo ou não percebida através do filtro confuso do ego. Ela não pode ser destruída ou interrompida de maneira alguma. É como o Sol eternamente incandescente. Ela consome tudo até não haver nenhum espaço para dúvida ou manipulação.
Todavia, quando esse calor é filtrado através do ego, ele torna-se estagnado, pois ignoramos o seu fundamento básico, nos recusamos a ver o espaço amplo onde tal energia ocorre. Por isso, essa energia não pode fluir livremente no espaço aberto compartilhado com o objeto de paixão.

Em vez disso, ela é solidificada, restrita e dirigida pelo comando central do ego para o exterior, a fim de puxar o objeto de paixão para dentro de seu território. Essa energia aprisionada estende-se até o seu objeto e depois retorna a fim de ser reprogramada. Alongamos nossos tentáculos e tentamos fixar nosso relacionamento. Essa tentativa de agarrar a situação torna o processo de comunicação superficial. Apenas tocamos a superfície da outra pessoa e ficamos emperrados aí, jamais vivenciamos todo o seu ser. Estamos cegos devido ao nosso apego.

O objeto de paixão, em vez de ser banhado pela cordialidade intensa da paixão livre, sente-se oprimido pelo calor sufocante da paixão neurótica.
A paixão livre é radiação sem um radiador, é uma cordialidade fluida e penetrante que avança sem esforço. Não é destrutiva porque é um estado equilibrado de ser e altamente inteligente. A autoconsciência inibe essa inteligente e equilibrado estado de ser. Se nos abrirmos, se abandonarmos essa ganância autoconsciente, veremos não só a superfície de um objeto, mas também todos os seus aspectos interiores. Não o apreciaremos apenas por suas qualidades sensacionais, mas o veremos em termos de qualidades totais, que são ouro puro.

Não somos engolfados pela exterioridade, mas ver o exterior nos impura simultaneamente para o interior. Dessa forma, atingimos o âmago da situação, e, se ela é o encontro de duas pessoas, o relacionamento é muito estimulante, pois não vemos o outro simplesmente em termos de atração física ou de padrões habituais: nós vemos tanto seu exterior como seu interior.
Esse processo de comunicação onipenetrante poderá causar um problema. Suponhamos que vejamos alguém direta e inteiramente e que essa pessoa, não querendo ser vista tão intimamente, fique horrorizada e fuja. O que fazer nesse caso? Fazemos nossa comunicação de forma total e completa. Se a pessoa foge, é essa a sua forma de comunicar-se conosco. Não investigamos mais.

Se prosseguíssemos em seu encalço, mais cedo ou mais tarde, nos converteríamos num demônio do ponto de vista dessa outra pessoa. Enxergamos através do seu corpo e vemos sua carne e gordura suculenta que gostaríamos de devorar, de modo que, para ela, nós nos parecemos com um vampiro. E quanto mais tentarmos persegui-la, mais fracassaremos. Desejosos, talvez a tenhamos examinado de forma muito penetrante, muito devassaladora. Pelo fato de termos belos e penetrantes olhos, paixão e inteligência perspicazes, abusamos de nosso talento e jogamos com isso. É um fato perfeitamente natural que as pessoas, se possuem algum poder particular ou se são dotadas de energia hábil, abusem dessas possibilidades, empregando-as mal ao tenta invadir todos os cantos. Nesse tipo de abordagem está faltando algo bastante óbvio - um senso de humor. Se procurarmos levar as coisas longe demais, isso quer dizer que não sentimos adequadamente o terreno; apenas sentimos o nosso relacionamento com o terreno.

O que está errado é que não percebemos todos os aspectos da situação e, conseqüentemente, falhamos no aspecto irônico e jocoso.
Algumas vezes as pessoas se nos esquivam porque estão fazendo um jogo conosco. Não desejam um envolvimento direto, honesto e sério conosco; querem apenas jogar. No entanto, se possuem algum senso de humor e nós não, nós nos tornamos diabólicos. É quando lalita, a dança, começa. Dançamos com a realidade, dançamos com os fenômenos aparentes. Quando desejamos extremamente alguma coisa não estendemos automaticamente a mão ou lançamos um olhar automaticamente; simplesmente admiramos. Em vez de fazermos um movimento impulsivo de nossa parte, permitimos um movimento do outro lado, o que significa aprender a dançar com a situação. Não precisamos criar toda a situação; apenas a observamos, trabalhamos com ela e aprendemos a dançar com ela. Assim ela não se torna criação nossa, mas sim uma dança mútua. Ninguém está constrangido, pois é uma vivência mútua.

Quando houver abertura fundamental num relacionamento afetivo, a fidelidade no sentido da verdadeira confiança ocorre espontaneamente; é uma situação natural. Porque a comunicação é muito real, muito bela e fluente, não poderemos nos relacionar de igual modo com outra pessoa. Portanto, em tal relacionamento somos atraídos mutuamente de forma automática. Mas, se surgir qualquer dúvida, se começarmos a nos sentir ameaçados por alguma possibilidade abstrata, embora nesse momento nossa comunicação esteja seguindo maravilhosamente, então já estaremos espalhando sementes de paranóia e encarando a comunicação simplesmente como um entretenimento do ego.
Se abrigarmos sementes da dúvida, isso pode nos tornar rígidos e aterrorizados com receio de perder a comunicação, a qual é uma coisa muito boa e real. E, em determinada fase, começaremos a ficar desorientados sem saber se a comunicação é afetuosa ou agressiva. Esta confusão traz um certo desnorteamento espacial, e deste modo começa a neurose.

Uma vez que perdemos a perspectiva correta, a distância correta no progresso de comunicação, então o amor se transforma em ódio. Tanto quanto no amor, no ódio queremos ter uma comunicação física com outra pessoa; no caso do ódio é matá-la ou feri-la. Em qualquer relação em que ego esteja envolvido, num relacionamento de amor ou em outro qualquer, há sempre o risco de se virar contra o parceiro. Enquanto houver noção de ameaça ou de insegurança de qualquer tipo, um relacionamento amoroso pode converter-se no seu oposto.

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